sexta-feira, 18 de maio de 2012

Frustração


Por razões com as quais não concordo, porém respeito, o texto "A incerteza e a ciência do século XXI" foi tirado do ar e permanecerá assim por algumas semanas (já voltou!!!). Peço desculpas a você amigo próximo, a quem recomendei esse blog, e também para você amigo não tão próximo, navegador da web que chegou até ele a partir de outras fontes, por precisar fazer isso.

Porém, na tentativa de não desapontá-lo tanto assim, publico hoje aqui um texto que escrevi há alguns meses, e que já foi publicado no blog comunitário do Laboratório de Biologia Molecular Ambiental (BioMA), do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, local onde desenvolvo meu projeto de mestrado. Se você quiser dar uma checada lá de vez em quando posso quase garantir que não vai se arrepender.

Fique agora com o texto sobre vegetarianismo e boa leitura!



COMER OU NÃO COMER CARNE?

A visão de um biólogo sobre uma das várias facetas do vegetarianismo.   

Nos últimos tempos tenho pensado muito sobre vegetarianismo. Uma de minhas melhores amigas, com quem, via de regra, tenho vários brainstorms construtivos, parou de comer carne. Quando nossas vidas nos permitem, sempre discutimos uma coisa ou outra sobre o assunto.





O último material analisado foi uma palestra de Gary Yourofsky, um estadunidense ativista pelos direitos dos animais (disponível no YouTube; http://www.youtube.com/watch?v=8bH-doHSY_o).  Em uma hora e dez minutos de palestra, Yourofsky discursa sobre os vários aspectos que o levam a acreditar fielmente que comer carne é um crime; primeiro contra os outros animais, e segundo, contra nós mesmos, uma vez que, na opinião do palestrante, comer carne e seus derivados (queijo, leite e ovos) faz mal para a saúde humana.

Dos vários pontos levantados por Yourofsky, não podia ter deixado de me incomodar e chamar minha atenção, como bióloga que sou, a declaração de que os seres humanos são animais 100% herbívoros. De acordo com Yourofsky, o comprimento de nossos intestinos é cerca de 7 a 13 vezes o comprimento de nosso tronco, o mesmo padrão de comprimento que é encontrado em outros herbívoros. Temos longos intestinos. Por outro lado, o intestino dos “carnívoros verdadeiros” como hienas, tigres e leões, seria apenas de 3 a 6 vezes o tamanho de seus troncos. Isso seria uma evidência forte de que não nascemos para comer carne.

Mas será que tal evidência sustenta tal afirmação?

Com esta questão rondando meus pensamentos por alguns dias, resolvi ir atrás de trabalhos científicos que abordassem o assunto; procurava eu por artigos que tratassem da evolução do homem e sua relação, ou não, com o hábito de comer carne. Eis que encontro um trabalho de 2003, publicado no The Journal of Nutrition tratando de tal tema. A autora, Katherine Milton discursa sobre as diferenças do tamanho dos intestinos de humanos e dos grandes símios (em inglês, great apes, os orangotangos, gorilas e chimpanzés), que são os parentes vivos mais próximos do homem moderno atual e tem uma dieta marcadamente herbívora. De acordo com ela, em humanos, mais da metade (56%) do volume total do intestino é constituída pelo chamado pequeno intestino enquanto que nos símios a parte maior seria o cólon (45%). Estas diferenças evidenciariam especializações distintas no que diz respeito à dieta: uma maior dominância de cólon, como presente nos símios, reflete uma dieta de baixa qualidade nutricional, constituída basicamente por plantas. Por outro lado, animais com um organismo dominado pelo pequeno intestino, como os seres humanos, que é o principal local de digestão e absorção de alimentos, sugere uma adaptação a alimentos de alta qualidade nutricional, como carnes.

Dá pra ficar com a pulga atrás da orelha, certo? Mas não vamos tomar nenhuma decisão precipitada, voltemos ao vídeo.

Logo depois de comentar sobre o intestino dos humanos, Yourofsky sugere um desafio: segundo ele, se somos realmente carnívoros, deveríamos ser capazes de caçar (isso mesmo, caçar) um esquilo pelas ruas, matá-lo e comê-lo com nossas próprias mãos, sem o uso de nenhuma ferramenta adicional. Depois dessa afirmação fiquei ainda mais desconfortável com o vídeo e pensei: ora, mas se temos um cérebro desse tamanho não deveríamos usá-lo para alguma coisa? Não poderia nossa inteligência substituir a destreza de garras e dentes imensos pela habilidade de construir ferramentas e armas para a caça? Qual foi minha felicidade quando, com o artigo de Katherine Milton, foi exatamente uma explicação similar a esta o que encontrei: segundo Milton, a primeira ferramenta de pedra em associação com um hominídeo é encontrada com os restos fossilizados do Homo habilis, um dos primeiros pertencentes às espécies do gênero Homo. Esta associação indica que, pelo menos a partir de então, a tecnologia da ferramenta de pedra começa a desempenhar um importante papel na vida desses hominídeos facilitando a alimentação por carne. Esta mudança de enfoque na dieta, empurrada fortemente pelo aprendizado do uso da tecnologia, foi gradualmente refletindo-se no tamanho do cérebro humano (gerando um aumento substancial) e no formato do intestino (aumentando a proporção do pequeno intestino). Sem o rotineiro acesso a carne e seus derivados, é improvável que os hominídeos em evolução chegassem a atingir um tamanho de cérebro tão notoriamente grande e complexo enquanto ao mesmo tempo evoluíam como grandes e ativos primatas sociais.

E agora? Fica a pergunta: será que todas as pesquisas científicas (que são muitas) relacionando o hábito de comer carne à evolução do homem estão enganadas? Sim, essa pode ser sim uma resposta. Mas pensemos por um outro lado: será que nossa vontade de parar o abuso aos animais nas fazendas de criação e abatedouros não está nos levando a tirar conclusões que são biologicamente equivocadas para que consigamos ganhar mais partidários para nossa causa?

Particularmente, também concordo que o modo de produção de carne atual talvez seja reflexo de uma sociedade doente, onde compra e venda são mais importantes e passam por cima dos direitos e do bem-estar animal. Mas será que comer carne não faz realmente parte dos hábitos do bicho homem? Evidências evolutivas mostram que faz parte. Por favor, não confundamos alhos com bugalhos (ou comedores de carnes, com assassinos cruéis).

Referência:
Katharine Milton. 2006. The Critical Role Played by Animal Source Foods in Human (Homo) Evolution. The Journal of Nutrition. vol133, no 11 (38865 –  38925).






13 comentários :

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Oi, Marcela!
    O livro do Desmond Morris, "O Macaco Nu", traz uma interessante explicação do processo evolutivo que resultou na transformação do ser humano de vegetariano a carnívoro. E, ao contrário do que o tal Yourofsky argumenta, parece que as evidências biológicas que você levantou sustentam essa conclusão: fomos herbívoros originalmente e evoluímos para nos tornarmos os carnívoros que somos hoje. O Morris dá um exemplo de outra espécie que passou por transformação semelhante: a panda gigante passou de carnívora a vegetariana. Curioso, não? rs.
    Concluindo, não acho que o problema maior dessa discussão seja a decisão individual de comer ou não comer carne. Acho que o problema é a forma como produzimos não só carne mas também alimentos em geral. É o modo de produção capitalista, que exige a maximização do lucro a qualquer custo, que provoca esses excessos que tanto asco provoca nos defensores dos animais.
    É possível mudar esse cenário? Vamos passear nas Ciências Sociais? rs.

    ResponderExcluir
  3. Gabriel, bem pertinente teu comentário. Vou tentar responder de onde tu paraste: é possível mudar esse cenário (como qualquer outro criado pelo mundo capitalista): parando de comprar. No caso da comida, é o mais fácil, se descontar o aspecto de convívio social e preferências gustativas, pois as alternativas de alimentos são várias, inúmeras, quase infinitas. A decisão de um vegetariano vira uma ação pelo menos três vezes ao dia, é algo que conta muito.

    ResponderExcluir
  4. Julia, até concordo, mas eu acho que essa solução é insuficiente, porque parte da premissa de que basta que todas as pessoas decidam não comer carne que o problema estará resolvido. Mas, quando pensamos no contexto da ação coletiva, percebemos que esse problema sequer está colocado como um problema para a maioria das pessoas, então não me parece factível que uma parte significativa da população tome essa decisão simplesmente por um movimento de conscientização. Além disso, é uma solução amarrada à lógica de mercado capitalista: comprar ou não comprar; deixar de comprar carne para comprar outros alimentos; oferta e demanda de produtos. Na minha opinião o foco do problema está no modo de produção e a solução não vai ser dada pelo mercado.
    Eu mesmo me preocupo com minha alimentação, mas não vejo necessidade em deixar de comer carne. Eu ficaria mais tranquilo se soubesse que a carne que eu como é de um boizinho que cresceu livre nos pastos de uma fazenda de uma pequena propriedade. Não me sinto constrangido por nenhum imperativo ético a não comer carne. Mas o modo que os alimentos são produzidos e os abusos que são cometidos contra os animais, isso sim me incomoda (mas não ao ponto de me fazer deixar de comer carne).

    ResponderExcluir
  5. olha, eu acredito que são as pessoas que criam o seu mercado, assim como elas "tem os governantes que merecem". tá certo que a maioria não consegue visualizar isso, e compra o que tem (em relação a todas as outras coisas de consumo também), vota em quem tá aí.
    com certeza o mais interessante é conscientizar a sociedade sobre o modo de produção como é, e como poderia ser.
    no meu caso, como pessoa que pesquisou um pouco sobre isso e etc., o que posso fazer de muito significativo de minha parte é não comer (e conversar com quem quiser falar sobre isso, apoiar causas que protejam os animais e que conscientizem as pessoas, entre outros coisas). cada dia eu tenho 3 pratos na minha frente, pelo menos, como falei antes. e cada um deles é uma oportunidade de evitar financiar esse mercado bizarro. mas eu não deixo de comer, pode tentar me vender outras coisas que eu vou comer com gosto! (alô mercado!)
    inclusive acho mais digno (mas não menos cruel) quem sabe do problema e ainda assim decide consumir (tu), do que quem não quer nem ouvir falar sobre de onde vem ou como é feito seu bacon e a sua responsabilidade diante disso.

    ResponderExcluir
  6. Gente, vamos trabalhar com fatos. Eu gosto de fatos, dados.

    Primeiramente, os levantamentos biológicos me convencem de que comer carne faz parte das necessidades do ser humano: primeiro a partir dos estudos associando a proteína animal ao aumento do cérebro, da inteligência e do desenvolvimento do homo sapiens como ser social. E segundo, o incontestável fato de que uma pessoa vegana, que não consome nenhum tipo de proteína animal, precisa de suplementação por causa da falta de B12. Precisou de suplementação, já não é algo natural(me corrija se eu estiver errada, Juju).

    Maaas.. isso não significa dizer que os hábitos alimentares humanos não sejam doentios. São!! Primeiro, não precisamos ingerir carne todo dia (né, Ju?), muito menos leite, ovos e queijo. Mas a indústria nos impele a fazer isso! Como resultado, morremos gordos com as veias entupidas. E pq isso acontece? Pq o modelo econômico em que vivemos não está preocupado com o bem estar social; ele visa o lucro, a venda. Modelo este que fatalmente sempre levará a manutenção de uma sociedade desigual. Por isso, ações sociais maquiadas, dessas que estão na moda agora, a moda da 'sustentabilidade', são só ideologia.

    É absurdo: maltratamos animais para a produção e ao mesmo tempo jogamos comida fora! Toneladas! Mas o que é pior: ainda há pessoas passando fome no mundo.

    Assim sendo, posso concordar que a maioria das pessoas nem se dá conta que o fato de consumir carne seja um problema social. E posso concordar também que a ação isolada de parar de comer carne não vai ajudar efetivamente de uma forma global. Mas a pergunta que fica é: quais ações podem levar a essa mudança?

    Eu, particularmente, tento consumir o mínimo possível de carne. E sempre que posso, compro produtos de origem animal com procedência conhecida e confiável. E incentivo os outros a fazerem o mesmo. Além disso, por mais simples que isso seja, uma das primeiras medidas que precisam ser tomadas é informar os desinformados! Tentar, pelo menos! Essa também é uma das razões da existência do blog: minha água pro incêndio no bico do beija-flor!

    Beijos nos dois, Gabriel e Júlia! ;)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Os cientistas e suas manias por dados e estatísticas... rs.

      Primeiro, uma dúvida, Marcela. O fato de o consumo de carne e nossa dieta mais complexa terem influenciado no aumento do cérebro e do nosso desenvolvimento como espécie é um dado histórico, que já se completou, ou você acha que uma pessoa que não come carne pode ter seu desenvolvimento afetado durante sua vida? Mais, considerando que já chegamos a esse estágio atual, poderíamos eliminar a carne de nossas dietas, substituindo-a por outros alimentos, sem regredir?

      Essa história do B12 aí é novidade pra mim. Todo vegetariano, ou vegano, suplementa sua alimentação com essa vitamina?

      Excluir
    2. A proteína animal é parte vital da dieta de um ser humano, sendo ainda mais importante no seu desenvolvimento. Digo isso como estudante de Medicina e que possui um amplo interesse na área nutricional. Confesso que não tenho muito conhecimento sobre a indústria, doente, de alimentos; só o suficiente para me indignar como vocês. Contudo, não deixo de me alimentar diariamente de uma quantidade adequada de proteínas para meu peso corporal - ainda mais que pratico atividades fisícias de alta intensidade.

      Excluir
  7. Olha, eu queria dizer que eu concordo em gênero, número e grau com o que a Marcela falou, porque ela é linda, loira, inteligente, maravilhosa, mestranda, gostosa e ainda é dona do Blog. Vou discordar como???
    Hahaha
    Brincadeirinha!!!
    Não, não é pra você autorizar nem postar esse comentário... Foi só uma provocação.
    Beijos!

    ResponderExcluir
  8. Oi Gabriel! Então, por definição, os vegetarianos apenas não consomem carne, mas consomem ainda outros produtos de origem animal: leite, ovos, manteiga.. Então eles têm uma fonte natural de B12. Mas os veganos, que não consomem nada de origem animal, esses precisam suplementar.

    Quanto a sua primeira dúvida: sim, o aumento do cérebro e a vantagem adaptativa que a carne criou é um 'dado histórico'. No sentido de que estas mudanças de hábito (consumir proteína de carne, utilizar ferramentas para a caça) criaram uma vantagem adaptativa tão relevante que auxiliaram no desenvolvimento de uma nova espécie, o homo sapiens.

    Desta forma, se uma pessoa pode ter seu desenvolvimento afetado na vida por não comer carne, isso eu não posso afirmar. Mas, por mais comprometida que a saúde dela possa ficar, ela vai continuar sendo um homo sapiens. A vantagem evolutiva da alimentação por carne foi fornecida pelos antepassados dela, e a atitude de uma pessoa única parando de comer carne não deve ter um impacto muito grande na especiação não. Ou, é melhor ficarmos de olho nos próximos 100 mil anos pra ver se estamos caminhando em direção a uma espécia mais derivada: inteligente, mas vegetariana!

    Depois me diz se você entendeu! Não sei se consegui explicar direito!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Além disso, podemos fazer um paralelo de que a carne consumida por uma fonte natural e saudável causa um mal que pode ser comparado ao fato de consumirmos oxigênio. Ok, a analogia pode parecer absurda, mas pensemos assim: O oxigênio é nosso aceptor final de eletróns e nos permite gerar as quantidades de energia necessárias para mantermos nossa elevada taxa metabólica, mas é o responsável pela criação de radicais livres que causa danos estruturais em moléculas e afeta nossa longevidade. Sem ele não somos, mas com ele somos um pouco menos. De forma semelhante, sem a carne em quantidades suficientes não seríamos capazes de obter desenvolvimento físico e mental compatível com um ser humano no gozo de suas capacidades plenas, mas o seu consumo pode trazer riscos maiores à doenças. Entretanto, cabe ressaltar que o lobby dos vegans em favor da sua causa, por vezes, usa artifícios errôneos para fortalecer seus argumentos. Assim como você salientou nesse belo texto, Marcela.

      Excluir
  9. Entendi perfeitamente!

    Você quis dizer que sua amiga Júlia não vai ficar mais burra só porque deixou de comer carne (rs). Aliás, acho que esse pessoal vegetariano e defensor dos animais pode estar transmitindo um verdadeiro meme para a espécie, no sentido de tomar uma decisão racional (e cultural) que pode influenciar na evolução da espécie e talvez até nas nossas características biológicas no futuro, mesmo contrariando a lógica do gene egoísta. Você não acha?

    Gostei da discussão, mas por enquanto vou continuar comendo minha carninha uma ou duas vezes por semana...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Exatamente!! Você entendeu direitinho também o conceito de meme! Que legal! Pelo visto os meus textos não estão tão ruins assim.. rs..

      A única coisa: isso não contraría a lógica do gene egoísta! Mas foi uma consequência do aperfeiçoamento intenso dos genes ao criar 'máquinas de sobrevivência' tão sofisticadas. Com o surgimento do ser humano e da cultura, é possível que o curso evolutivo tenha estabelecido uma nova unidade de evolução (os memes). Onde isso vai nos levar, só os próximos milhares de anos vão mostrar!!

      Excluir