sexta-feira, 31 de julho de 2015

A cobra com patas e os "direitos" dos cientistas brasileiros


Você já ouviu falar na história de que os pássaros são os dinossauros do nosso tempo? Isso mesmo. Os pássaros parecem ser os parentes mais próximos dos dinossauros que vivem no Planeta Terra nos dias de hoje.

O máximo, né? 

Uma das evidências mais importantes - estudada pelos paleontólogos para chegar a essa conclusão - é o fóssil Archaeopteryx; um gênero animal que viveu no período Jurássico, há aproximadamente 150 milhões de anos, pelas bandas do que hoje é o sul da Alemanha. Seu nome em alemão, Urvogel, significa primeiro pássaro. Eram espécies pequenas e com asas largas, o que provavelmente os possibilitava voar. No entanto, eles possuíam mandíbulas com dentes afiados, três dedos com garras, uma longa cauda óssea e penas; características típicas dos dinossauros. Tudo isso você consegue observar no fóssil, e por causa dessas características esse gênero é considerado a transição animal entre dinossauros e aves.


Ceative commons license: Archaeopteryx lithographica, found in the Jurassic Solnhofen Limestone of southern Germany.

Porque queria mostrar aos seus alunos o Archaeopteryx, o cientista inglês Dr. David M. Martill levou a turma à Alemanha, à ummuseu na pequena cidade de Solnhofen. Chegando lá, além do fóssil do dinossauro-pássaro, Dr. Martill encontrou também um outro fóssil com a etiqueta "fóssil de vertebrado não-identificado". Estava lá, dando sopa.

O estudo desse espécime foi publicado na revista Science desta semana.

E por que foi publicado na Science? Porque tudo indica que este é um fóssil de uma cobra antiga que possuía patas!

Mas, what is the big deal  sobre termos um fóssil de cobra com patas?




Este fóssil nos ajuda a entender um pouquinho sobre a evolução das cobras. Vai dizer que você também não acha as cobras animais peculiares? Pois bem: os cientistas já sabem que muito provavelmente as cobras evoluíram dos lagartos, mas não entendem exatamente de qual espécie de lagarto, quando e por que elas evoluíram para cobras. O Tetrapodophis amplectus, esse fóssil, cujo estudo foi publicado na Science, possui apenas 8 cm de comprimento, e parece ser o molde do que um dia foi uma cobra jovem. Ele não apresenta uma cauda longa lateralizada, o que é característica dos animais aquáticos; e essa evidência sugere que as cobras não devem ter evoluído de animais aquáticos, mas sim de terrestres.

Mas a característica mais marcante para os cientistas foi encontra 2 pares de patas em Tetrapodophis amplectus! Aparentemente, as primeiras espécies de cobras existentes no Planeta Terra, lá beeeem antigamente, tinham patas, com mãos, dedos e tudo!



A história evolutiva das cobras que os cientistas tinham conseguido contar até agora, envolvia a possível presença de pernas vestigiais, no momento em que as cobras deixaram de andar e começaram a se arrastar. Mas, juntando esse fóssil às evidências, parece que a história é um pouquinho diferente: os cientistas estão especulando se ao invés de tornar-se um órgão apenas vestigial, se essas patas não podem ter tido alguma utilidade nessas cobras primitivas, como para caçar e prender presas.

Mais um pedacinho de evidência na luta para nos ajudar a contar a história evolutiva das cobras! 

Uau, hein?



A preservação e o encontro de fósseis intactos é algo extremamente raro de acontecer. Por isso, cada evidência como essa, que nos ajuda a montar de forma mais acurada a história evolutiva dos seres vivos na Terra, é um material extremamente precioso!

E sabe onde essa cobra patuda vivia?

No Brasil, no Ceará! Há cerca de 120 milhões de anos.

Mas... se esse é o fóssil de uma espécie que viveu no Ceará, o que ele estava fazendo perdido num museu na Alemanha?


Ahá.

Pois então.

Bom, a gente já sabe que durante todo o período colonial, os europeus extraíram muitas riquezas das suas colônias (Américas, África, Oceania) e levaram para a Europa. Mas a verdade é que no Brasil esse despatriamento que riquezas não parou até hoje. Há várias evidências e denúncias de contrabando de fósseis, mas pouca investigação e contenção desse crime contra a ciência.



No caso do Tetrapodophis amplectus, parece que ele permaneceu em uma coleção privada por muitos anos antes de ir parar no museu Alemão. Segundo os pesquisadores europeus envolvidos no estudo desse fóssil, eles o encontraram pela primeira vez já lá na Alemanha. Bem longe do Ceará. E então o estudaram, e trouxeram essa imensa contribuição para a ciência ao conhecimento de todos. 

Depois que o trabalho foi publicado, uma polêmica foi levantada no Brasil sobre a possível ilegalidade da transferência do fóssil para a Europa, e sobre um possível direito dos cientistas brasileiros sobre o estudo do mesmo. 


Quando questionado sobre o caso da transferência ilegal do fóssil para a Alemanha, e sobre incluir cientistas brasileiros no trabalho, em se tratando de um fóssil procedente do Ceará, o paleontólogo inglês, Dr. Martill, fez algumas colocações interessantes.



 “...That also lead to xenophobia — Brazil fossils for Brazilians, British fossils for Brits. It should be fossils for all. No countries existed when the animals were fossilized..."
"...For me nationality (or sexuality) is not an issue. If you invite people because they are Brazilian then people will think that every Brazilian author on a scientific paper is there because he is Brazilian and not because he is a clever scientist..." 

Numa tradução simplificada e não literal, ele diz que quando os animais foram fossilizados não havia ainda países. E que adicionar cientistas brasileiros na pesquisa apenas por eles serem brasileiros poderia levar à uma interpretação errada do papel desses cientistas. 


(Escolhi deliberadamente alguns trechos da entrevista do cientista para argumentar o meu ponto. Para uma leitura completa e independente da entrevista do Dr. Martill, clique aqui). 

Além de fazer comentários - que do meu ponto de vista - foram sensatos, no entanto, o paleontólogo se excede em comparações sem sentido, misturando assuntos delicados e não relacionados.


De qualquer forma, acho que temos abordado o assunto pelo ângulo errado. Será que devemos continuar discutindo a eticidade do cientistas inglês - como pesquisador e como pessoa - e esquecer o verdadeiro coração desse problema?



Será que não devíamos pensar sobre o que esse caso diz sobre nós brasileiros?


Conheço alguns paleontólogos e estudantes de paleontologia brasileiros, e não tenho dúvidas de que o Brasil tem cientistas competentes o suficiente para fazer a descrição desse fóssil. Mesmo assim, isso não aconteceu. Qual é então a pergunta mais importante aqui? Não seria, por que?
E depois dessa: até quando?

O Brasil não é o país da ciência. Nos últimos tempos, nem do futebol. Agarrar a bandeira verde e amarela e gritar "o fóssil é nosso!!!" é simplesmente mudar de assunto.


Quando vamos começar a fazer e responder às perguntas mais difíceis e mais importantes? 





3 comentários :

  1. Leitura maravilhosa. Linguagem simples e clara. Postem mais!

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  2. Mais de 500 anos se passaram, nada mudou,...meu pobre Brasil da exploração....

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  3. Vergonhoso o brasileiro querer cota na Science e reconhecimento por um trabalho que ninguém aqui teve.

    Esse tipo de coisa continuará acontecendo enquanto houver essa consciência coletiva de explorado. Enquanto a culpa for do outro, e não do nosso próprio descaso.

    O pesquisador ingles achou na Alemanha um fóssil brasileiro de importancia impar. Ao invés de agradecer o cidadão, o acusamos de roubo e apropriação de um conhecimento nosso que nunca tivemos, porque não achamos a tal cobra com patas.

    Boa sorte ao pesquisadores brasileiros no CE, procurando pata em cobra, precisou um gringo apontar a direção, mas se procurar acha mais!

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