quinta-feira, 24 de abril de 2014

Dois dedos e um pouco de gelo num pequeno trago filosófico


Até que ponto o homem está fadado a ser produto de sua época?


Essa é ou não é uma das perguntas mais relevantes da contemporaneidade? Via de regra, quando observo o comportamento das pessoas em um mundo onde a informação está cada dia mais acessível, noto que mesmo assim, a maior parte delas (ou de nós) se comporta de acordo com valores e preceitos apreendidos dos pais e familiares sem muito questionamento. Mas de onde tais regras e valores surgiram? Já parou pra pensar nisso?

Bertrand Russel, em História do Pensamento Ocidental (R$ 16,00 a versão Saraiva de Bolso) levanta a questão que abre esse texto quando conta a história de Boécio, “notável pensador, de quem vida e obra apresentam agudo contraste com a decadência geral da civilização da época”.

A tal época a qual Russel se refere é a Idade Média, período em que a filosofia estava confinada aos clérigos, onde o pensamento da Antiguidade, dos filósofos gregos, havia momentaneamente desaparecido do meio dos homens comuns.
Figura: obra filosófica de Boécio, pensador que viveu por volta do ano 500 d.c., em Roma. Embora fosse cristão, como a maioria das pessoas da época, seu cristianismo parecia não passar de nominal, uma vez que seu pensamento e obra sofreram mais influência dos pensadores gregos do que das especulações teológicas dos Padres.

A Boécio são conferidas as mais antigas traduções latinas dos escritos de Aristóteles. Sua principal obra filosófica chama-se Consolação da filosofia, que apresenta visões de deus e do pecado nem um pouco ortodoxas e muito livres da teologia cristã. Os pensamentos de Boécio em Consolação remontam muito a Sócrates e Platão. *

*A filosofia socrática é baseada toda no desinteresse pelos bens terrenos; o seu maior interesse é na busca da virtude. O importante precisamente é que devemos tentar a busca do conhecimento, e embora Sócrates sempre afirmasse que nada sabia, não achava que a busca do conhecimento estava fora do alcance dos homens. Sócrates sustentava que o que fazia um homem pecar era a falta de conhecimento. Se soubesse, não pecaria. A causa dominante do mau era, portanto, a ignorância. Assim, para se alcançar o bem é preciso ter conhecimento. Logo, o Bem é conhecimento. Os pensamentos de Boécio, escritos durante a Idade Média, seguem uma linha parecida.

Boécio sustentava tais convicções em uma era onde os tratados filosóficos da Antiguidade grega estavam quase perdidos e a superstição e misticismo religiosos dominavam as pessoas a tal ponto que só restava a pena de morte como herege para quem não partilhasse dos ideais cristãos. 

E num mundo cheio de dificuldades para o livre-pensar, Boécio recusou-se a ser um completo produto de sua época.

Resta a pergunta: e nós, somos Boécios? Ou alguma outra coisa?

Com essa questão, não estou querendo descredibilizar as convicções e os valores de cada um. Mas gostaria de chamar para a reflexão. Por exemplo: você já parou pra pensar de onde vem a sua noção de o que represente uma família? E as suas condutas de vida: casar ou não, ter filhos ou não, um trabalho estável ou sair pelo mundo viajando. Já pensou sobre elas? De onde a organização social na qual vivemos surgiu? E mais, será esta a única forma de organização social possível? O que você quer é realmente o seu desejo? O que você acredita foi o que você tomou como verdade pra si depois de observar várias verdades diferentes? Ou é apenas o que a maioria têm como verdade?


Indago isso porque as vezes considero que, mesmo num mundo cheio de informação e liberdade, as pessoas ainda são cheias de superstições e preconceitos (como ser humano que aprende, também não me excluo dessa história). Na verdade, de repente é o excesso de informação o problemático: tem tanta coisa pra se ler e aprender que ninguém mais sabe por onde começar!


Mas por algum lugar devemos iniciar essa jornada! A disponibilidade de informação livre e acessível (na internet, por exemplo) é uma riqueza sem precedentes. E estar vivo nesse momento também é! Sócrates dizia que uma vida não analisada não valia a pena ser vivida. Tendo a concordar 100% com ele nessa afirmação. E como escreveu minha melhor amiga há algum tempo "a superfície (de todas as coisas) é um tédio. O valor de cada informação se multiplica progressivamente quando você se aprofunda nelas. Eu acredito nisso. As coisas obviamente são mais gostosas quando é você mesmo quem mastiga".

Acho que vale a pena você dar ouvidos àquela pulga que está atrás da sua orelha, nem que seja pra se maravilhar e dar risadas por alguns minutos com realidades nunca antes imaginadas e investigadas.